Exercício 1
Leia o Capítulo II, intitulado Golias, da obra Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto. Nesse capítulo, Policarpo Quaresma recebe a visita de Olga, sua afilhada, do marido dela e de Ricardo do Coração dos outros, um violonista com quem Quaresma tinha tomado aulas de violão, instrumento que considerava tipicamente brasileiro. Olga voltava de um passeio ao Carico, onde havia uma cachoeira, a duas léguas do sítio do padrinho.
[...] O que mais a impressionou no passeio foi a miséria geral, a falta de cultivo, a pobreza das casas, o ar triste, abatido da gente pobre. Educada na cidade, ela tinha dos roceiros ideia de que eram felizes, saudáveis e alegres. Havendo tanto barro, tanta água, por que as casas não eram de tijolos e não tinham telhas? Era sempre aquele sapê sinistro e aquele "sopapo" que deixava ver a trama de varas, como o esqueleto de um doente. Por que, ao redor dessas casas, não havia culturas, uma horta, um pomar? Não seria tão fácil, trabalho de horas? E não havia gado, nem grande nem pequeno. Era raro uma cabra, um carneiro. Por quê? Mesmo nas fazendas, o espetáculo não era mais animador. Todas soturnas, baixas, quase sem o pomar olente e a horta suculenta. A não ser o café e um milharal, aqui e ali, ela não pôde ver outra lavoura, outra indústria agrícola. Não podia ser preguiça só ou indolência. Para o seu gasto, para uso próprio, o homem tem sempre energia para trabalhar. As populações mais acusadas de preguiça, trabalham relativamente. Na África, na Índia, na Cochinchina, em toda parte, os casais, as famílias, as tribos, plantam um pouco, algumas coisas para eles. Seria a terra? Que seria? E todas essas questões desafiavam a sua curiosidade, o seu desejo de saber, e também a sua piedade e simpatia por aqueles párias, maltrapilhos, mal alojados, talvez com fome, sorumbáticos!...
Pensou em ser homem. Se o fosse passaria ali e em outras localidades meses e anos, indagaria, observaria e com certeza havia de encontrar o motivo e o remédio. [...]
Como no dia seguinte fosse passear ao roçado do padrinho, aproveitou a ocasião para interrogar a respeito o tagarela Felizardo. [...]
— Bons dias, "sá dona".
— Então trabalha-se muito, Felizardo?
— O que se pode.
— Estive ontem no Carico, bonito lugar... Onde é que você mora, Felizardo?
— É doutra banda, na estrada da vila.
— É grande o sítio de você?
— Tem alguma terra, sim senhora, "sá dona".
— Você por que não planta para você?
— "Quá sá dona!" O que é que a gente come?
— O que plantar ou aquilo que a plantação der em dinheiro.
— "Sá dona tá" pensando uma coisa e a coisa é outra. Enquanto planta cresce, e então? "Quá, sá dona", não é assim.
Deu uma machadada; o tronco escapou: colocou-o melhor no picador e, antes de desferir o machado, ainda disse:
— Terra não é nossa... E "frumiga"?... Nós não "tem" ferramenta... isso é bom para italiano ou "alamão", que governo dá tudo... Governo não gosta de nós...
Desferiu o machado, firme, seguro; e o rugoso tronco se abriu em duas partes, quase iguais, de um claro amarelado, onde o cerne escuro começava a aparecer.
Ela voltou querendo afastar do espírito aquele desacordo que o camarada indicara, mas não pôde. Era certo. Pela primeira vez notava que o self-help do Governo era só para os nacionais; para os outros todos os auxílios e facilidades, não contando com a sua anterior educação e apoio dos patrícios.
E a terra não era dele? Mas de quem era então, tanta terra abandonada que se encontrava por aí? Ela vira até fazendas fechadas, com as casas em ruínas... Por que esse acaparamento, esses latifúndios inúteis e improdutivos?
A fraqueza de atenção não lhe permitiu pensar mais no problema. Foi vindo para casa, tanto mais que era hora de jantar e a fome lhe chegava.
Encontrou o marido e o padrinho a conversar. Aquele perdera um pouco da sua morgue, havia mesmo ocasião em que era até natural. Quando ela chegou, o padrinho exclamava:
— Adubos! É lá possível que um brasileiro tenha tal ideia! Pois se temos as terras mais férteis do mundo!
— Mas se esgotam, major, observou o doutor.
Dona Adelaide, calada, seguia com atenção o crochet que estava fazendo; Ricardo ouvia, com os olhos arregalados; e Olga intrometeu-se na conversa:
— Que zanga é essa, padrinho?
— É teu marido que quer convencer-me que as nossas terras precisam de adubos... Isto é até uma injúria!
— Pois fique certo, major, se eu fosse o senhor, aduziu o doutor, ensaiava uns fosfatos...
— Decerto, major, obtemperou Ricardo. Eu, quando comecei a tocar violão, não queria aprender música... Qual música! Qual nada! A inspiração basta!... Hoje vejo que é preciso... É assim, resumia ele.
Todos se entreolharam, exceto Quaresma que logo disse com toda a força d'alma:
— Senhor doutor, o Brasil é o país mais fértil do mundo, é o mais bem dotado e as suas terras não precisam "empréstimos" para dar sustento ao homem. Fique certo!
— Há mais férteis, avançou o doutor.
— Onde?
— Na Europa.
— Na Europa!
— Sim, na Europa. As terras negras da Rússia, por exemplo.
O major considerou o rapaz durante algum tempo e exclamou triunfante:
— O senhor não é patriota! Esses moços...
O jantar correu mais calmo. Ricardo fez ainda algumas considerações sobre o violão. À noite, o menestrel cantou a sua última produção: "Os Lábios da Carola". [...] Olga tocou no velho piano de Dona Adelaide; e, antes das onze horas, estavam todos recolhidos.
Quaresma chegou a seu quarto, despiu-se, enfiou a camisa de dormir e, deitado, pôs-se a ler um velho elogio das riquezas e opulências do Brasil.
A casa estava em silêncio; do lado de fora, não havia a mínima bulha. Os sapos tinham suspendido um instante a sua orquestra noturna. Quaresma lia; e lembrava-se que Darwin escutava com prazer esse concerto dos charcos. Tudo na nossa terra é extraordinário! pensou. Da despensa, que ficava junto a seu aposento, vinha um ruído estranho. Apurou o ouvido e prestou atenção. Os sapos recomeçaram o seu hino. Havia vozes baixas, outras mais altas e estridentes; uma se seguia à outra, num dado instante todas se juntaram num uníssono sustentado. [...] Quaresma pôde ler umas cinco páginas. Os batráquios pararam; a bulha continuava. O major levantou-se, agarrou o castiçal e foi à dependência da casa donde partia o ruído, assim mesmo como estava, em camisa de dormir.
Abriu a porta; nada viu. la procurar nos cantos, quando sentiu uma ferroada no peito do pé. Quase gritou. Abaixou a vela para ver melhor e deu com uma enorme saúva agarrada com toda a fúria à sua pele magra. Descobriu a origem da bulha. Eram formigas que, por um buraco no assoalho, lhe tinham invadido a despensa e carregavam as suas reservas de milho e feijão, cujos recipientes tinham sido deixados abertos por inadvertência. O chão estava negro, e carregadas com os grãos, elas, em pelotões cerrados, mergulhavam no solo em busca da sua cidade subterrânea.
Quis afugentá-las. Matou uma, duas, dez, vinte, cem; mas eram milhares e cada vez mais o exército aumentava. Veio uma, mordeu-o, depois outra, e o foram mordendo pelas pernas, pelos pés, subindo pelo seu corpo. Não pôde aguentar, gritou, sapateou e deixou a vela cair.
Estava no escuro. Debatia-se para encontrar a porta; achou e correu daquele ínfimo inimigo que, talvez, nem mesmo à luz radiante do sol o visse distintamente...
Exercício 2
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