Exercício 1
Analise os poemas abaixo e evidencie características comuns à estética literária da poesia modernista da segunda fase.
Carlos Drummond de Andrade
Consolo na praia
Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.
José
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
Cecília Meireles
Desenho
Traça a reta e a curva,
a quebrada e a sinuosa
Tudo é preciso.
De tudo viverás.
Cuida com exatidão da perpendicular
e das paralelas perfeitas.
Com apurado rigor.
Sem esquadro, sem nível, sem fio de prumo,
traçarás perspectivas, projetarás estruturas.
Número, ritmo, distância, dimensão.
Tens os teus olhos, o teu pulso, a tua memória.
Construirás os labirintos impermanentes
que sucessivamente habitarás.
Todos os dias estarás refazendo o teu desenho.
Não te fatigues logo. Tens trabalho para toda a vida.
E nem para o teu sepulcro terás a medida certa.
Somos sempre um pouco menos do que pensávamos.
Raramente, um pouco mais.
Canção
e o navio em cima do mar;
– depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio…
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.
A noite dissolve os homens
A noite desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tão pouco os rumores
que outrora me perturbavam.
A noite desceu. Nas casas,
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda,
sem esperança… Os suspiros
acusam a presença negra
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho
na noite. A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias,
apagou os almirantes
cintilantes! nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo…
O mundo não tem remédio…
Os suicidas tinham razão.
Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirás com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio…
Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora.
Carlos Drummond de Andrade
a) No poema, que tipo de efeito a noite tem sobre os homens? Que sentimento desperta nas pessoas?
b) A ação da noite se restringe a alguns homens ou tem alcance geral? Justifique sua resposta com elementos do poema.
c) O poema foi publicado em 1940. Que elementos do contexto são mencionados nele?
d) Na sua opinião, o que representa a metáfora da noite?
e) Na segunda estrofe aparece a imagem da aurora. O que ela traz para os seres humanos, de acordo com o poema.
f) Na sua opinião, o que representa a metáfora da aurora?
Exercício 3
Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
Cecília Meireles
a) Qual é o canto a que se refere o poema?
b) Para o eu lírico, o que motiva o seu canto?
c) Identifique antíteses presentes no poema. A quem elas se referem?
d) Como o eu lírico vê a si mesmo em sua experiência de poeta?
e) Qual é a importância dessas antíteses no processo de criação poética?
f) Identifique no poema uma referência à temática da efemeridade do tempo.
g) Para o eu lírico, se a matéria é efêmera, então o que é eterno? Justifique sua resposta com um verso do poema.
Leia um trecho do primeiro capítulo do romance "Vidas secas" de Graciliano Ramos.
Capítulo 1 – Mudança
NA PLANÍCIE avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas
verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e
famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na
areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que
procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos
galhos pelados da catinga rala.
Arrastaram-se para lá, devagar, Sinha Vitória com o filho mais
novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio,
o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda
de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás. Os
juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a
chorar, sentou-se no chão.
– Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai. Não obtendo
resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou
acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu
algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isto não acontecesse,
espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo.
A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de
manchas brancas que eram ossadas. O vôo negro dos urubus fazia círculos altos
em redor de bichos moribundos.
– Anda, excomungado.
O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o
coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca
aparecia-lhe como um fato necessário – e a obstinação da criança irritava-o.
Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o
vaqueiro precisava chegar, não sabia onde.
Tinham
deixado os caminhos, cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a
margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés.
Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a idéia de
abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a
barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinha Vitória estirou o
beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que
estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão,
acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados
no estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena.
Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a
Sinha Vitória, pôs o filho no cangote, levantou-se, agarrou os bracinhos que
lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinha Vitória aprovou esse
arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros
invisíveis.
E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silencio
grande.
Ausente do companheiro, a cachorra Baleia tomou a frente do
grupo. Arqueada, as costelas à mostra, corria ofegando, a língua fora da boca.
E de quando em quando se detinha, esperando as pessoas, que se retardavam.
Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio.
Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, a beira de uma poça:
a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida.
Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava lembrança
disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetos
familiares, estranhava não ver sobre o baú de folha a gaiola pequena onde a ave
se equilibrava mal. Fabiano também às vezes sentia falta dela, mas logo a
recordação chegava. Tinha andado a procurar raízes, à toa: o resto da farinha
acabara, não se ouvia um berro de rês perdida na catinga. Sinha Vitória,
queimando o assento no chão, as mãos cruzadas segurando os joelhos ossudos,
pensava em acontecimentos antigos que não se relacionavam: festas de casamento,
vaquejadas, novenas, tudo numa confusão. Despertara-a um grito áspero, vira de
perto a realidade e o papagaio, que andava furioso, com os pés apalhetados,
numa atitude ridícula. Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e
justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não podia
deixar de ser mudo.. Ordinariamente a família falava pouco. E depois daquele
desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro
aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra.
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